A Amazônia tem mais de cinco milhões de metros quadrados, ocupa mais de 50% do território brasileiro. A capital da região completará mais de quatro séculos, 409 anos, em janeiro, e levantou uma das mais duradouras revoluções populares do país, a Cabanagem, contra os desmandos da coroa e a escravidão na Amazônia. Belém é a capital da Amazônia que avançou em políticas sociais para negros e negras, inovando ao criar a Coordenadoria Antirracista (Coant); e instaurando, na Região Norte, o primeiro Estatuto de Promoção da Igualdade Racial, além de efetivar o funcionamento de um Conselho Municipal de Igualdade Racial com protagonismo do povo preto.
Agora, a Prefeitura de Belém apresenta o Memorial dos Povos Negros. Um ato significativo para um município com mais de 70% de população autodeclarada de pretos e pretas, A população, o movimento negro, as comunidades de matrizes tradicionais, quilombolas por meio da participação popular na gestão cidadã lutou, reivindicou e, agora, a prefeitura deixa aberta a porta de uma obra marcada pelo conceito, estrutura e estética antirracistas.
Respeito à vontade do povo
A edificação, mais um projeto de autoria do prefeito, arquiteto e urbanista Edmilson Rodrigues, e do professor, coordenador de projetos especiais, José Raiol, segue a vontade popular numa perspectiva antirracista: “O Memorial dos povos negros Zélia Amador de Deus é resultado de uma decisão popular. O primeiro congresso de negros e negras da cidade apontou como prioridade a construção de uma arquitetura que expressasse toda uma simbologia da resistência negra contra escravização e expressasse todo movimento democrático e soberano do país”, disse o prefeito sobre a concepção da obra que ora está com construção avançando.
O prédio do Memorial está localizado no Complexo Turístico Ver-o-Rio, que já abriga o Memorial dos Povos Indígenas e o Museu de Arte Urbana de Belém (Maub), e agora recebe mais uma obra muito aguardada pela população, em especial pelo movimento negro da cidade. Nilma Bentes, ativista negra, uma das fundadoras do Centro de Defesa do Negro do Pará e referência para o movimento negro na Amazônia e no Brasil, declara que “mesmo reconhecendo que muitos seres se dizem humanos, naturalizam o racismo e banalizam a palavra luta, há de se registrar uma alegria tímida que estamos sentindo, ao ver o prefeito Edmilson Rodrigues inaugurar esse memorial dos povos negros. Este prédio – mesmo que não com esse nome – foi pleiteado há décadas, juntamente com outras providências que nos façam avançar no caminho na busca de atingir a equidade racial neste chão. Este chão que, desde sua invasão há séculos tem sido marcado por opressões e iniquidades, que resultam nas abismais desigualdades sociais, foco do nosso lutar”.
A Prefeitura de Belém, por meio da Coordenadoria Antirracista (Coant), que tem como coordenadora a jornalista, doutora, militante do movimento negro, Elza dos Santos, discutiu com movimentos sociais o projeto do Memorial em seus detalhes e considera uma obra histórica para a cidade. Elza dos Santos sinaliza a obra como um marco das políticas sociais sob a ótica antirracista: “O Memorial dos Povos Negros entregue pelo prefeito Edmilson Rodrigues ao povo de Belém é o reconhecimento da importância dos africanos em Belém, no Pará. Essa contribuição vai além de uma obra como prédio concreto e deixa uma marca de uma administração que prima pela valorização da diversidade étnica e racial do nosso povo negro, indígena, quilombola, de povos tradicionais de matriz africana. É momento de celebrar a Lei 9969/2023, que criou a Coant e o Conselho de Promoção da Igualdade Racial de Belém e celebrar a entrega do Memorial dos Povos Negros, uma conquista para cidade com intensa participação dos movimentos negros”.
O conceito da obra
O Memorial é o desenho da proa de uma embarcação, que faz parte do cotidiano dos povos da Amazônia e lembra o modo como as populações negras chegavam à região. A circulação vertical no espaço será através de uma rampa, que permite e respeita às normas de acessibilidade. O espaço receberá treliça (entrelaçamento de estrutura de ferro) no corpo do memorial, para sustentação da forma de uma cobra grande, uma personagem da cultura popular, das encantarias amazônicas; e na cultura africana, a cobra assume sentidos que indicam a permanência e movimento, a cura, a proteção da saúde, adoração a divindades da natureza. Essa peça circulará até o ponto mais alto do memorial, formando na cabeça da cobra a figura de um mirante, possibilitando uma vista privilegiada para a baía do Guajará, que banha Santa Maria de Belém.
Os materiais utilizados e a composição da obra refletem um simbolismo da fortaleza da luta antirracista em Belém. “O telhado é o protagonista, e não ocultado. A madeira, contrastando ao vidros e mármores é desvalorizada nas edificações locais, mas nós utilizamos na cobertura e no deck da proa. E generosos beirais, técnica ancestral úteis em regiões muito chuvosas, que compreende a fixação do telhado para além da parede externa, com finalidade de proteger a construção e conter a infiltração, foram utilizados na obra. Essas técnicas haviam sido proibidas em edifícios no centro de Belém pelo código de polícia municipal, em 1901, mesmo código que destilava o preconceito contra as manifestações da cultura negra, como as rodas de carimbó e capoeira. No Memorial dos Povos Negros, o uso dos beirais ainda vão expressar a grandiosidade das varandas amazônicas”, explica o arquiteto responsável por projetos especiais da Prefeitura de Belém, José Raiol.
O memorial terá um deck, que é uma área reivindicada pelos movimentos sociais, para oferendas com segurança ambiental, e um quiosque que permitirá a prática da culinária dos chamados povos de matriz africana, valorizando o título de cidade criativa da gastronomia selo concedido a Belém pela Unesco, em 2015.
Homenagens
Memorial Zélia Amador de Deus
O memorial dos povos negros vai se chamar Memorial Zélia Amador de Deus. A homenageada dispensaria apresentações, pois a história dela se confunde com a história da organização do movimento negro no Pará com repercussões no país. A professora Zélia Amador de Deus é professora emérita da Universidade Federal do Pará, aposentada do Instituto de Letras e Comunicação e membro da Faculdade de Artes da UFPA, atriz, militante fundadora do Centro de Defesa e Pesquisa do Negro no Pará (Cedenpa), organização que existe há 40 anos na Região, hoje, com sede em Belém. Zélia Amador ficou ainda mais conhecida no país pela sua intensa atuação no movimento pelas cotas na educação de ensino superior como ação afirmativa das várias frentes de luta e expressão do movimento negro no país. A escolha do nome do memorial em homenagem a ela, referência também da Marcha das Mulheres Negras, foi aclamada pelos membros do Conselho Municipal de Igualdade Racial do Município de Belém.
“A negritude agora tem um espaço digno para celebrar as lutas. Um espaço de resistência e bonito na cidade, que lembra nossa ancestralidade e acende o futuro dos povos nas gestões das políticas, que respeitam a diversidade e têm o compromisso de combater o racismo”, comemora Zélia Amador.
Sala Mestre Laurentino
Como ainda está sendo concebido o uso do Memorial no pavimento térreo funcionará o anfiteatro, que servirá para eventos culturais, manifestações de expressões da cultura negra, rodas de danças populares e demais atividades organizadas e demandadas pelas comunidades de negros e negras. Esse espaço terá o nome de Mestre Laurentino, o mestre da cultura popular, falecido no último dia 21 de dezembro, considerado o roqueiro mais idoso do Brasil, compositor de músicas que vão dos ritmos que remetem às origens indígenas, caribenhas e africanas, até as periferias urbanas. O mestre completaria 99 anos em 01 de janeiro, e deixa um repertório gravado por nomes como Gilberto Gil e Dona Onete, e ainda composições inéditas.
Biblioteca Antirracista Bruno de Menezes
No segundo piso da edificação do Memorial funcionará a biblioteca que levará o nome do jornalista, escritor, folclorista Bruno de Menezes, autor da obra modernista “Batuque”. O autor só cursou a escola até o curso primário, foi funcionário público, mas foi com a literatura, com a confraria do Peixe Frito, que Bruno de Menezes, na década de 40, ocupou uma cadeira como membro da Academia Paraense de Letras, e também foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGPA). Como poeta modernista sua obra reflete a raça negra.
Espaço Circular Multiuso Nilma Bentes
Paraense, do bairro do samba e do amor, a engenheira agrônoma, pedreirense Nilma Bentes, uma das fundadoras do Centro de Defesa e Pesquisa do Negro do Pará (Cedenpa), idealizadora da Marcha das Mulheres Negras, segue ampliando o debate público sobre equidade racial e de gênero. A luta social travada pela militante, ativista negra também passa pelo racismo com implicações regionais, visando fortalecer na Amazônia uma rede de organizações no contexto da luta antirracista numa região invisibilizada.
Proa ancestral Mãe Josina de Averekete e Mãe Raimundinha de Mina Nagô
Espaço da Proa (formato da edificação) que avança em direção às águas da baía do Guajará. Um espaço para oferendas, devidamente adequado às práticas de povos tradicionais de matrizes africanas (Potmas), remetendo aos ancestrais em contato direto com a natureza. O espaço possibilita criar condições ecologicamente sustentáveis para realização dos ritos de oferendas aos Orixás, simbólico para uma cidade que abriga mais de três mil comunidades de terreiros de matriz africana. O espaço vai levar o nome em homenagem a duas sacerdotisas do axé (yalorixás): Mãe Josina de Averekete e Mãe Raimundinha de Mina Nagô. Ao homenagear as yalorixás, busca-se lembrar de matrizes culturais, religiosas que simbolizam resistência de matrizes africanas e formaram a cultura regional paraense, majoritariamente afro-amazônica.
Mãe Josina representa o povo de mina, oriundo do Maranhão, que migrou para o Pará, e no nosso estado fundou o que hoje é o mais antigo terreiro de umbanda em Belém, o terreiro de Mina Dois Irmãos, tombado pelo patrimônio cultural do estado do Pará. E mãe Raimundinha de Mina Nagô, liderança de tambôr de mina, que reúne práticas de povos oriundos de Gana, Benin, Nigéria, do Forte de São Jorge da Mina e várias etnias entre jejes, iorubás, mandingas.
Uma arquitetura antirracista
Ao visitar a obra o prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, definiu o Memorial dos Povos Negros Zélia Amador de Deus como uma intervenção antirracista: “A arquitetura do Memorial dos Povos Negros expressa valores revolucionários e atende a decisão de comunidades de negros e negras de Belém. Eu me sinto muito feliz na condição de prefeito e muito honrado na condição de arquiteto e urbanista por ter concebido esta obra arquitetônica e participado do processo de desenvolvimento do projeto do mestre José de Andrade Raiol e equipe da coordenadoria de projetos especiais da prefeitura, para homenagear a resistência do povo negro, e sinalizando o futuro sem dar um passo atrás no combate ao racismo”.
O Memorial dos Povos Negros é, na prática, uma reparação histórica edificada numa obra que recupera a ancestralidade dos povos negros e aponta para o futuro sustentável. O memorial valoriza as figuras humanas, personalidades, que em várias frentes de atuação, sejam artísticas, culturais, intelectuais, científicas, da luta pelos direitos humanos e a luta antirracista, são ícones de histórias dos povos negros, que agora, passam a ser respeitadas pela gestão e contadas por escolha do povo.
Texto: Keyla Negrão
Fonte: Agência Belém/Foto: Controladoria de projetos especiais/PMB