quinta-feira, dezembro 26, 2024
Desde 1876

LITERATURA – Um conto de Natal indígena

Naquela manhã ele levantou cedo. Já estava acordado desde a madrugada. Passara a noite relembrando que há quarenta anos, quando era menino, fora assim. Recordou passo a passo, cada detalhe, daquele distante dia, quando pedira para sua mãe acordá-lo, mas que não fora preciso. Dormira e acordara várias vezes durante a noite. Seus sonhos foram povoados por imagens confusas. Ouvira na escola sobre um tal milagre de Natal. Para sua gente não há Papai Noel, renas, neve e outras coisas que para alguns brancos não existem, mas eles crêem. O indiozinho achou que poderia ter aquilo que os outros curumins tinham e naquela hora fora até a oca do pajé. O velho xamã se espantou com a inesperada e estranha visita e com um aceno de cabeça perguntou o que o indiozinho desejava, obtendo como resposta outra pergunta. O que era Natal? O velho índio também já ouvira falar mas não sabia o que era. Era coisa de branco e não devia se importar com aquilo. Então ele esperara a noite toda a chegada de um velho de barbas brancas, roupa vermelha e botas pretas – descrição que ouvira de um funcionário da Funai -, viajando em uma carroça puxada por veados galheiros e jogaria um presente na oca onde houvesse criança. Ele que ficara acordado não viu materializado o que tanto esperava. Já adulto viria saber que os pais, tios, avós e parentes mais velhos dos meninos da cidade se fantasiavam de Papai Noel para distribuir presentes. Às vezes os presentes eram deixados debaixo da rede ou da cama das crianças as fazendo crer que fora obra do tal velhinho de barbas brancas. Assim, naquele mês de dezembro quando ele viu alguns meninos índios com a mesma ansiedade que tivera quando criança ele decidiu que iria dar asas a fantasia das crianças de sua aldeia. Durante os dias que antecederam o dia de Natal ele se preparou e na véspera à noite, quando todos dormiam, pintou seu corpo de tinta vermelha, o rosto de branco e pernas e braços de preto e apanhou os brinquedos que adquirira e que deixara escondidos em um lugar na floresta. E pela madrugada ele entrou sorrateiramente na oca de cada família, deixando um presente para cada criança, chegando a ser visto por alguns como um Papai Noel estilizado. E quanto amanheceu lá estava ele no meio da taba, já livre da indumentária de tintas, esperando o resultado. Quando as crianças foram acordando, a surpresa de felicidade que cada uma exprimia era sentida a cada grito, a cada risada, a cada murmúrio que vinha das ocas. Ele sentiu-se um pouco mal por estar violentando sua cultura, trazendo para sua aldeia um costume do homem branco. Mas imediatamente consolou-se. Ele que já morara na cidade e viajara por outros paises, concluíra que criança é criança, seja onde for, na África, Ásia, Europa ou em qualquer parte do planeta. Seria uma questão de tempo. Alguns seriam seduzidos pelos costumes alienígenas, mas outros, como ele, mesmo rodando o mundo, voltariam para cumprir um ciclo, uma missão, a de preservar a duras penas a floresta e sua cultura, mesmo às vezes tendo que se render a situações como aquela, e ter a honra de ser como nasceu: índio.

NOTA DO AUTOR

Este conto foi escrito em dezembro de 2000, quando morei e trabalhei em Redenção/PA. Originariamente emprestei ao protagonista e ao pajé nomes indígenas, inspirado nos kayapos que moram naquela cidade do Sul do Pará. Mas, para publicação resolvi suprimir os nomes para evitar interpretações equivocadas que viessem me trazer aborrecimentos.

DEDICATÓRIA

Dedico este conto aos meus dois filhinhos – Jordão, 5 anos, que apesar da pele embranquecida, se diz um indiozinho, e a Israel, 2 anos, que parece ir no mesmo caminho.

Texto: Roberto Pimentel

*Advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor

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