Cedo ainda ele foi tirado da ninhada e tanta foi sua adaptação ao lar para onde fora destinado, que de lobo transformou-se em cão. Anos depois sua dona começou a se encher dele, passando a enxergar defeitos e mais defeitos. Reclamava que ele não afugentava as pessoas inoportunas que batiam à porta. E quando latia era para pessoas amigas, passando a achar que a presença daquele animal em casa era um desperdício. Irritava-se em seus retornos para casa quando ele, para agradá-la, queria lamber-lhe o rosto e repuxava os fios das meias quando saltava para recepcioná-la, levando-a a soltar imprecações e repeli-lo aos gritos e chutões.
Algumas amigas da mulher tinham se desfeito de seus cães. Outras tinham conseguido amestrá-los a seu gosto. E havia as que não tinham feito nenhuma coisa e nem outra, simplesmente decidiram aturá-los. Ah, mas com ela isso não aconteceria. Como não conseguira amestrá-lo e nem educá-lo e sua tolerância já atingia os limites do suportável, decidindo desfazer-se dele, ideia que já lhe passara pela cabeça, principalmente, quando via outros espécimes ganhando prêmios ou sendo elogiados pelo porte, comportamento, beleza e outros atributos a encherem de orgulho e satisfação suas donas.
Mesmo sendo rejeitado, o cão não abandonava sua fidelidade natural. Queria estar sempre junto da dona. Mas até sua presença passou a irritá-la. Se ela estava na sala lá estava ele. Se ela ia para a cozinha ou quarto ele ia atrás. Até no banheiro o bicho queria entrar.
Um dia a mulher não aguentou mais. Num de seus ataques de fúria decidiu que chegara a hora de desfazer-se daquele trambolho. E, despejando todo seu aziúme, ela o enxotou.
Inicialmente, ele refugiou-se embaixo da cama e dali foi expulso a vassouradas. Correu para o banheiro e ali chinelos, sapatos e outros objetos lhe foram lançados obrigando-o a correr para garagem, de onde continuou a ser escorraçado, restando a alternativa de escapar para a rua, sem, contudo, afastar-se da casa, permanecendo junto ao portão. De vez em quando, a mulher ameaçava lançar-lhe um objeto obrigando-o a afastar-se momentaneamente com receio de ser atingido, retornando depois para próximo ao portão do lado de fora. Ela chegou a lançar-lhe um balde d’água para expulsá-lo dali. Essa incômoda situação para ambos perdurou alguns dias até que, após uma chuva torrencial que deixou o pobre animal com frio, encharcado, ele por fim compreendeu a rejeição.
Na pele, a água da chuva e no íntimo, a humilhação. Naquela noite, quando a lua estava alta, ele sonhou com uma matilha na qual todos eram parecidos com ele. Ao despertar sentiu uma estranha sensação de que estava sendo chamado. Não sabia se os uivos eram ouvidos ou imaginados. Talvez viessem de seu interior, do coração, da alma. Ele que havia sido rejeitado, enxotado, humilhado, levantou-se e foi levado a afastar-se da casa.
Durante a madrugada, ele vagueou pelas ruas seguindo seu instinto em busca de algo que ainda não sabia o que era e, quando se deu conta, estava entrando em um bosque. Não lembrava de ter visto ainda aquele ambiente, mas tudo lhe parecia familiar. Era como se sempre tivesse vivido ali. Veio à recordação, longinquamente, um uivo que achou ser o materno. E quando amanheceu a exaustão o levou a dormir, despertando com a presença da alcateia com a qual sonhara. Era como se estivesse mirando-se em um espelho múltiplo.
Sentiu a amistosidade e de repente estava integrado aos demais. Os dias passaram, semanas, meses, e quando chegou o inverno, a mulher em casa lembrou-se do cão. Ele era incômodo, mas muitas vezes ela teve seus pés aquecidos nos pelos dele. Quando não havia ninguém em casa, ele lhe servia de companhia. Quando ela sentia medo, ele estava ali a seu lado lhe dando segurança. Não deixava que gatos ladrões bagunçassem sua cozinha. E a mulher lembrou outras virtudes e utilidades de seu cão.
Apesar dos pesares, até que lhe servira. Arrependeu-se de tê-lo escorraçado, de ter sido tão dura. E ela sentiu saudade e resolveu redimir-se. Soubera que ele fora visto entrando na mata. Então, decidiu sair à sua procura. Pagou guias para poder localizar e encontrar seu animal. Passaram-se dias, semanas de buscas. E uma tarde a mulher deparou-se com uma figura canina que lhe pareceu familiar num plano mais alto daquela floresta.
Apesar da mudança, ela o reconheceu por causa de uma cicatriz que ele tinha no rosto, fruto ruim de uma vassourada que um dia ela lhe aplicara. Logo ao vê-lo, imaginou ter notado um gesto quase imperceptível de um abanar de rabo. Mas ele permanecia imóvel com olhos brilhantes fixos nela. E ela achou que aquele olhar era da alegria do reencontro. A imobilidade do animal levou a mulher a concluir que talvez fosse de medo ou retração por causa da rejeição anterior. E, segura de si, a mulher achou que era de alegria. E, confiante saltou do carro indo ao encontro de seu animal, pois já decidira aturá-lo. Esperara e sonhara com aquele momento. Iria agarrá-lo, abraçá-lo e deixar que lhe lambesse o rosto, lhe cheirasse. Que danificasse suas meias, que latisse e tudo mais. Seu desejo era correr, mas preferiu caminhar lenta e romanticamente ao encontro de seu cão. Mas a reação deste quando a mulher estava bem próxima, foi de recuar, recuar, enquanto a mulher subia o penhasco a seu encontro. E de repente a mulher viu que logo atrás de seu cão estava uma alcateia. E quando estava prestes a tocá-lo, ele rosnou deixando suas presas à mostra, demonstrando sua recusa ao reencontro. Esse comportamento foi solidariamente imitado pelos demais que passaram a uivar ameaçando avançar contra a mulher deixando-a amedrontada, obrigando-a a retroceder e voltar a seu carro, concluindo que aquele que fora seu cão voltara a ser lobo e gostara desta condição.
Que vida doméstica nada! Nada de corrente. Nada da coleira e espaço diminuto. Ração, vitaminas, injeções, banhos inoportunos e outras coisas da vida doméstica faziam parte do passado. Algo que quis desesperadamente quando e enquanto estava em casa. Mas agora se acostumara com a vida atual e queria viver livre como e com os de sua espécie, em seu verdadeiro habitat. E a mulher retornou sozinha para casa. Naquela noite, quando a lua surgiu, como já se acostumara, ele uivou passeando pelo bosque com os demais de sua espécie. Era definitivamente lobo e, pronto!
Castanhal-PA, 23/03/99
Por: Roberto Pimentel (pimentelrm@yahoo.com.br)
*O autor é advogado, delegado de Polícia aposentado, especializado em meio ambiente, radialista e escritor. Escreve toda quinta-feira neste espaço de A PROVÍNCIA DO PARÁ








