Efeitos do El Niño ocorreram desde junho de 2023, causando seca severa e altas temperaturas. Pesquisadores apontam que o padrão do fogo na Amazônia brasileira mudou no último ano em decorrência da emergência climática e de uma redistribuição dos registros de queimadas devido à redução da devastação da floresta no Arco do Desmatamento.
O fogo registrado na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, aumentou 157% em 2023, em comparação com o ano anterior. Foram 586 mil hectares queimados, contra 228 mil em 2022, de acordo com análise exclusiva da InfoAmazonia, utilizando os dados de áreas queimadas do MapBiomas Fogo. Segundo cientistas, esse crescimento está relacionado a dois fatores principais: mudanças climáticas e fenômenos como o El Niño e o aquecimento do oceano Atlântico Norte.
Em 2019, quando ocorreu o último El Niño, a TI Raposa Serra do Sol teve 214 mil de hectares queimados, ou seja, um aumento de 173% entre um ano de El Niño para outro. “A história é: se não tivesse El Niño, com a diminuição do desmatamento, diminuiria o fogo. Como teve um evento climático extremo, apesar de reduzir a área queimada localmente, não reduziu na Amazônia toda, porque teve uma outra região que foi muito impactada pela seca”, diz Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam).
ÁREA QUEIMADA
Alcebias Sapará, vice-presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), explicou que o calor sentido no último verão (setembro de 2023 a março de 2024) na TI Raposa Serra do Sol foi diferente. “Geralmente, não está tão seco assim. Hoje, o verão já seca tudo. Anos atrás, o El Niño não era tão forte assim. Então, tem alguma coisa acontecendo e as pessoas não querem ouvir”, disse.
O El Niño é um fenômeno meteorológico que provoca aquecimento anormal e persistente na superfície do Oceano Pacífico na linha do Equador. Essa linha corta a região norte da Amazônia, passando por Amapá, Pará, Amazonas e Roraima, onde está localizada a TI Raposa Serra do Sol.
Em 2023, a TI Raposa Serra do Sol, que desde 2019 era a segunda terra indígena mais queimadas da Amazônia, passou para o primeiro lugar. A TI Tumucumaque, no Amapá, apareceu pela primeira vez na terceira posição. E a TI Parque do Araguaia, no Tocantins, em segundo.
AQUECIMENTO
O professor Paulo Brando, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, pesquisa fogo na floresta amazônica e explica que vivemos um calor atípico. Além do efeito do El Niño, em 2023 também houve aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Os dois fenômenos juntos foram capazes de provocar mudanças drásticas nos ecossistemas por já estarem interagindo com um clima alterado, mais quente.
“Existe algo que a gente chama de variabilidade climática, que ocorre a cada 30 anos, as mudanças dos ciclos climáticos. É natural que existam ondas de calor e de seca. Mas, desde os anos 2000, deveríamos estar vivendo um clima seco mais ameno e de repente não é o que está ocorrendo. Isso é assustador”, disse.
Segundo Brando, quando há interação entre o aquecimento do Atlântico e do Pacífico, há também uma alta na temperatura da região amazônica, o que é “superperigoso” para a vegetação: “se você muda o clima, você acaba mudando a estrutura daquele ecossistema. Então, essa interação estressa ainda mais o sistema”, completa.
O aquecimento dos dois oceanos impede a formação das chuvas, deslocando as nuvens para outras localidades. Os efeitos disso duraram por um ano na Amazônia, entre junho de 2023 e junho de 2024, o que tomou parte da época chuvosa. Com menos chuva, o solo da vegetação ficou ainda mais seco, criando um cenário altamente inflamável.
“A gente tem que lembrar que a chuva vai impactar muita coisa, mas, principalmente, ela é armazenada no solo. Então, se você não tem muita chuva na estação chuvosa, o solo permanece seco. É essa seca que vai estressar a vegetação”, diz Brando.
DESMATAMENTO
Os pesquisadores do Ipam destacam que os padrões de fogo na Amazônia mudaram em termos de localidade, época e tipo de vegetação no ano passado. Em junho deste ano, eles publicaram uma nota técnica indicando que 10,7 milhões de hectares foram queimados na Amazônia de janeiro a dezembro de 2023, um aumento de 36% em relação a 2022. No mesmo período de 2023, os alertas de desmatamento tiveram uma redução de 50%. Ane Alencar explica que, com a redução do desmatamento no bioma, esperava-se que as queimadas também diminuíssem, mas isso não ocorreu.
A dinâmica do fogo e do desmatamento na Amazônia em 2022 e 2023 revelam uma série de tendências e padrões diferenciados e preocupantes.
Para compreender essa mudança de padrão, os cientistas analisaram a dinâmica do fogo e do desmatamento na Amazônia brasileira em 2022 e 2023. Eles entenderam que o Brasil conseguiu conter o desmatamento na parte mais sensível da Amazônia – 219 municípios de um total de 433 -, o que levou à forte queda na taxa. Essa redução do desmate fez o fogo diminuir especialmente nessas localidades. No entanto, o fogo não diminuiu no restante da Amazônia, com o aumento na área queimada se concentrando mais ao norte da região amazônica.
“Teve um ingrediente aí que foi o clima. Ele fez com que a geografia do fogo mudasse. A área queimada mais afetada foi mais ao norte porque nessa região foi onde houve o epicentro da seca. Então, aí tem a relação com o El Niño e o aquecimento do Oceano Atlântico Norte”, explicou Alencar.
Além da mudança no padrão regional das queimadas, houve também uma alteração no tipo de vegetação afetada. Normalmente, há uma alta incidência de fogo para limpeza de pastagem, mas em 2023 este tipo de fogo teve uma redução de 50%. Neste ano, a vegetação mais queimada foi a de floresta, que inclui tanto as de terra firme como as alagadas e o mangue, com aumento de 121% na área afetada, e as áreas campestres.
“Muitas áreas de campo na Amazônia, as áreas de campinarana, de lavrado, tipo savânica, estão em territórios indígenas. Existe território que queimou toda a área de savana que tem. Como o ano foi muito seco, esse fogo saiu do controle, é difícil controlar o fogo numa área muito longe, muito inflamável. Dentro de uma terra indígena e unidade de conservação, é quase impossível”, diz Alencar.
CONSEQUÊNCIAS
A TI Raposa Serra do Sol, por exemplo, é cortada por estradas que dão acesso à fronteira de Roraima com a Guiana e a Venezuela. Além disso, possui áreas de praias, cachoeiras e rios. Lideranças indígenas relatam que isso tem provocado invasões territoriais para tráfico de drogas, garimpo e turismo. Na fronteira com a Guiana, a TI enfrenta invasões garimpeiras de balsas que extraem minérios no rio que faz a divisa entre os dois países, resultando em conflitos frequentes com os indígenas da Raposa Serra do Sol.
Os componentes climáticos apontados pelos cientistas potencializam o espalhamento do fogo, e os indígenas identificaram que, no ano passado, as queimadas tiveram sua origem principalmente nas estradas. Oficialmente, não é permitido entrar em terras indígenas sem o consentimento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e dos representantes das comunidades. Por isso, aquela região não devia estar sendo usada como trânsito de não indígenas.
“Tanto na TI Raposa Serra do Sol quanto na São Marcos, nós temos algumas estradas. Tem a BR-174 e a 433. Geralmente, o fogo parte dessas áreas da BR. A gente não consegue provar se de fato foi intencional, mas como nós temos igarapés que as pessoas param, nós temos alguns banhos, e geralmente partem disso aí. Como há anos não tínhamos um verão tão forte, tinha muita matéria acumulada, esse fogo vai se alastrando por todo o território”, explica Marcelo Macuxi, coordenador da Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos, território próximo à TI Raposa Serra do Sol.
A cientista Erika Berenguer, da Rede Amazônia Sustentável, explica que as estradas e as bordas que ficam ao redor de áreas de campo e floresta são altamente sensíveis ao fogo, e piora em regiões como a da TI Raposa Serra do Sol, formada com grandes áreas de lavrado, um tipo de vegetação que não é florestal e tende a ser mais seca.
“A borda tem vento, tem muita luz solar, a gente vai ter um clima completamente diferente nas bordas. O fogo entra pela borda, que é mais inflamável. Estamos falando de uma localidade que está comida, cheia de buraco, que já foi incendiada outras vezes”, explica a cientista citando a degradação florestal anterior.
Os indígenas também explicam que o uso do fogo é uma ferramenta importante na criação dos roçados. No entanto, devido ao calor extremo e à seca severa, ele saiu de controle em alguns casos, espalhando-se rapidamente e atingindo proporções severas.
“A gente tem costume de usar fogo na roça de forma controlada, mas esse ano a gente não conseguiu, porque a terra estava mais quente mesmo. Mas a gente se uniu e conseguiu amenizar nesses casos, com apoio do PrevFogo também”, conta o líder Amarildo Macuxi, da TI Raposa Serra do Sol.
Em 2023, os meses com maior incidência de queimadas também mudaram. Antes, agosto e setembro eram os meses de pico, mas, no ano passado, os piores meses foram outubro, novembro e dezembro, período em que o El Niño causou maior impacto. Com isso, os indígenas estão perdendo a capacidade de prever as mudanças do tempo. Nos meses em que o fogo controlado era normalmente possível, como em dezembro, no ano passado isso não funcionou, e essas condições não eram previstas.
A pesquisadora Alcilene Cardoso, também do Ipam, que atua em comunidades atingidas pelo fogo, explica que as mudanças do clima estão alterando os calendários agrícolas dos indígenas.“Os eventos extremos mexem com todo o cotidiano dessas comunidades, com grandes secas e grandes enchentes, os efeitos sobre o calendário agrícola são muito grandes. O indígena que estava preparado para fazer suas roças no início do inverno amazônico, que geralmente era novembro, hoje não é. Pode ser dezembro, pode ser janeiro. Então, essa sazonalidade está mudando e muda todo ritmo, todo pulso que essas comunidades estão acostumadas”, explica.
ANÁLISE
Nesta reportagem, coletamos e analisamos dados da plataforma MapBiomas Fogo, que mapeia as áreas queimadas no Brasil entre 1985 a 2023. Focamos no período de 2019 a 2023 e cruzamos esses dados com os limites das Terras Indígenas fornecidos pela Funai, identificando assim o aumento do fogo nesses territórios.
Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Jullie Pereira Foto: Jullie Pereira – InfoAmazonia*