Abro a garagem para ir trabalhar de manhã e me deparo com uma cena comovente. Um vizinho carregando nos braços um velho amigo seu para levá-lo a dar o passeio matinal. O sol ainda morno ilumina os dois e noto que o amigo de meu vizinho que não anda mais, também não enxerga mais. Seus olhos estão quase transparentes, esmaecidos. Retardo minha saída para não dar de cara com os dois, naquele momento uma mistura de discrição e respeito. E porque meu coração se entristece.
Acho que não conseguiria dar bom dia aos dois. Pensar que daqui a alguns anos poderei estar nas mesmas condições. Não que a tarefa seja trabalhosa, indigna, um tanto penosa do lado emocional. Não se trata apenas de humanidade, fraternidade, mas de gratidão. Quantas vezes o velho amigo de meu vizinho não o consolou indo atendê-lo alegre saudando seu retorno ao lar, seja como tenha sido a faina?
Decerto fez meu vizinho esquecer a fadiga com seus latidos doces em troca de um afago, como agora tem feito um amigo meu. Quantas vezes os “azeites” do chefe de meu vizinho foram imediatamente esquecidos com aquela saudação descompromissada, abanando o rabo e latindo alegremente? Foram tantas vezes, tantos dias, meses, anos.
À noite, ao descrever a cena em casa, ouvi de meu filho que ele carrega na pele as “tatuagens” que o velho Bobby lhe fez e que ele nunca me disse porque também gosta de animais. Minha filha lembrou de um cão esperto correndo na rua latindo atrás dos carros que por ali passavam. Antes de mudarmos de assunto, silenciamos por alguns instantes. E minha filha já adolescente, fazendo voz de criança, olhou para a Mily e o Tyson e disse: “vochês nhão vão envelhecher nhão?”. Eles abanaram o rabo, latiram e disputaram nossos afagos.
1998
Texto: Roberto Pimentel
*O autor é advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor. Escreve toda quinta-feira neste espaço de A PROVÍNCIA DO PARÁ