Em um centro de controle movimentado, cercado por dezenas de monitores, a força policial do Talebã exibe com orgulho sua recém-adquirida rede de 90 mil câmeras de segurança — usadas para vigiar o dia a dia de milhões de pessoas na capital do Afeganistão.
“Monitoramos toda a cidade de Cabul a partir daqui”, explica Khalid Zadran, porta-voz do chefe de polícia do Talebã, apontando para uma das telas.
As autoridades afirmam que essa vigilância vai ajudar a combater a criminalidade, mas os críticos temem que ela seja usada para reprimir a dissidência e monitorar o cumprimento do rigoroso código de moralidade imposto pelo regime islâmico do Talebã, de acordo com sua interpretação da Sharia, a lei islâmica.
A BBC é o primeiro veículo da imprensa internacional a ter permissão para ver o sistema em ação.
Dentro da sala de controle, os policiais se sentam enfileirados para assistir às transmissões ao vivo de milhares de câmeras, vigiando a vida das seis milhões de pessoas que vivem em Cabul.
Desde as placas dos carros até as expressões faciais, tudo é monitorado.
“Em determinados bairros, quando notamos grupos de pessoas e suspeitamos que possam estar envolvidas com o uso de drogas, atividades criminosas ou algo suspeito, entramos rapidamente em contato com a polícia local”, diz Zadran.
“Eles chegam rapidamente para investigar a natureza da aglomeração.”
Sob o governo anterior, Cabul era ameaçada diariamente por ataques do Talebã e dos militantes do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico, assim como por sequestros e roubos de carros.
Quando o Talebã retomou o poder em 2021, prometeu reprimir o crime.
O aumento drástico no número de câmeras de vigilância na capital é um sinal da sofisticação cada vez maior na forma como o Talebã impõe a lei e a ordem. Antes de seu retorno, apenas 850 câmeras estavam instaladas na capital, de acordo com um porta-voz das forças de segurança que foram expulsas do poder.
No entanto, nos últimos três anos, as autoridades do Talebã também introduziram uma série de medidas draconianas que limitam os direitos e as liberdades das pessoas, especialmente das mulheres.
O governo do Talebã não foi reconhecido formalmente por nenhum outro país.

O sistema de vigilância mostrado à BBC em Cabul tem a opção de rastrear pessoas por reconhecimento facial. No canto de uma tela, aparecem imagens com cada rosto categorizado por faixa etária, gênero e se a pessoa tem ou não barba ou está usando máscara facial.
“Em dias claros, podemos dar zoom em indivíduos [que estão] a quilômetros de distância”, afirma Zadran, destacando uma câmera posicionada no alto, que foca em um cruzamento movimentado.
O Talebã monitora até mesmo seu próprio pessoal. Em um posto de controle, quando soldados abriram o porta-malas de um carro para inspeção, os operadores focaram suas lentes, dando um zoom para examinar o conteúdo do veículo.
O Ministério do Interior afirma que as câmeras “contribuíram significativamente para aumentar a segurança, reduzir os índices de criminalidade e prender rapidamente os infratores”.
E acrescenta que a introdução das câmeras de segurança e dos controles de motocicletas levou a uma redução de 30% nas taxas de criminalidade entre 2023 e 2024, mas não é possível verificar esses dados de forma independente.
No entanto, grupos de direitos humanos estão preocupados com quem está sendo monitorado — e por quanto tempo.
A Anistia Internacional afirma que a instalação de câmeras “sob o pretexto de ‘segurança nacional’ estabelece um modelo para o Talebã continuar com suas políticas draconianas que violam os direitos fundamentais das pessoas no Afeganistão, especialmente das mulheres em espaços públicos”.
Por lei, as mulheres só podem falar dentro de casa, embora na prática isso não esteja sendo rigorosamente aplicado. Também são barradas em muitas formas de emprego e, quando adolescentes, impedidas de ter acesso ao ensino médio e superior.
Embora continuem a ser vistas nas ruas de cidades como Cabul, são obrigadas a usar uma cobertura facial.
Em dezembro, mulheres que estavam se formando como parteiras e enfermeiras disseram à BBC que haviam recebido ordens para não voltar às aulas.
Fariba*, uma jovem recém-formada que mora com os pais em Cabul, não consegue encontrar trabalho desde que o Talebã assumiu o poder. Ela diz à BBC que há uma “preocupação significativa de que as câmeras de vigilância possam ser usadas para monitorar os hijabs [véus] das mulheres”.
O Talebã afirma que somente a polícia da cidade tem acesso ao sistema de câmeras de segurança, e que o Ministério da Propagação da Virtude e Prevenção do Vício — a polícia da moralidade do Talebã — não o utiliza.
Mas Fariba teme que as câmeras coloquem ainda mais em risco aqueles que se opõem ao regime do Talebã.
“Muitas pessoas, especialmente ex-militares, defensores dos direitos humanos e mulheres que protestam lutam para circular livremente e geralmente vivem na clandestinidade”, diz ela.
A organização Human Rights Watch afirma, por sua vez, que o Afeganistão não possui leis de proteção de dados em vigor para regulamentar a forma como as imagens coletadas pelas câmeras de segurança são armazenadas e utilizadas.
A polícia diz que os dados são mantidos por apenas três meses. E, de acordo com o Ministério do Interior, as câmeras não representam uma ameaça à privacidade, uma vez que “são operadas a partir de uma sala especial e totalmente confidencial por um responsável específico e profissional”.
As câmeras parecem ser de fabricação chinesa. Os monitores da sala de controle e a marca que aparece nos feeds que a BBC viu tinham o nome Dahua, uma empresa ligada ao governo chinês.
Relatos anteriores de que o Talebã estava em negociações com a também chinesa Huawei Technologies para comprar câmeras foram negados pela empresa. As autoridades do Talebã se recusaram a responder às perguntas da BBC sobre a origem do equipamento.
Parte do custo da instalação da nova rede está recaindo sobre os afegãos comuns que estão sendo monitorados pelo sistema.
Em uma casa no centro de Cabul, a BBC conversou com Shella*, que foi solicitada a pagar por algumas das câmeras instaladas nas ruas próximas à sua casa.
“Eles exigiram milhares de afeganes de cada domicílio”, diz ela. É uma quantia alta em um país onde as mulheres que têm emprego podem ganhar apenas cerca de 5 mil afeganes (aproximadamente R$ 392) por mês.

A situação humanitária em Cabul, e no Afeganistão em geral, continua precária após anos de guerra. A economia do país está em crise, mas o financiamento da ajuda internacional foi em grande parte interrompido desde que o Talebã voltou ao poder.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), 30 milhões de pessoas necessitam de ajuda.
“Se as famílias se recusassem a pagar [pelas câmeras], elas eram ameaçadas com cortes de água e energia dentro de três dias”, acrescenta Shella.
“Tivemos que pegar empréstimos para cobrir os custos.”
“As pessoas estão passando fome — de que adiantam essas câmeras para elas?”, questiona.
O Talebã afirma que, se as pessoas não quiserem contribuir, podem fazer uma reclamação oficial.
“A participação foi voluntária, e as doações foram de centenas, não de milhares”, insistiu Khalid Zadran, porta-voz da polícia do Talebã.
Apesar das garantias, defensores dos direitos humanos, tanto dentro quanto fora do Afeganistão, continuam preocupados com a forma como um sistema de vigilância tão poderoso vai ser usado.
Jaber, um vendedor de legumes e verduras em Cabul, diz que as câmeras representam outra maneira pela qual os afegãos se sentem impotentes.
“Somos tratados como lixo, não temos oportunidade de ganhar a vida, e as autoridades nos consideram inúteis”, disse ele à BBC.
“Não podemos fazer nada.”
*Os nomes das mulheres entrevistadas para esta reportagem foram alterados para sua segurança.
Com reportagem adicional de Peter Ball.
Reprodução: .bbc.com