Já faz muitos anos. Um dia cheguei à casa dos meus pais e o assunto era a prima carioca, filha de uma prima de papai. Como na canção de Caymmi, sua mãe pegara um ita no norte e fora pro Rio morar. E lá nasceu uma filha. Passaram-se os anos e um dia a prima carioca, querendo buscar suas raízes, resolveu vir à passeio a nossa Belém à época do Círio de Nazaré. Ficara decidido que a prima turista seria recepcionada no Aeroporto de Val-de-Cans (vale de cães idosos).
Minha irmã mais, nova afeita à etiquetas, resolveu programar o que faríamos e como nos portaríamos. Decidi aderir à comissão de recepção, levando de roldão meus então dois filhos ainda crianças. E no dia da chegada, lá estávamos nós ansiosos para abraçar a prima da Cidade Maravilhosa e lhe entregar um pomposo buquê de rosas seguidos dos versos a serem recitados por minha filha e meu filho. O avião chegaria às 22 horas e com uma hora de antecedência já estávamos no aeroporto marcando presença e sendo alvo da curiosidade de quantos ali estavam. Quem era a tal prima carioca? Era o que perguntavam os olhares levados à faixa de boas vindas que carregávamos. A comitiva foi formada por mamãe, minhas duas irmãs, minha filhinha e meu filhinho, a mãe de meus filhos, eu e mais algumas pessoas ligadas à família.
Informados do voo e previsão de chegada, nos postamos em frente ao único portão de desembarque do aeroporto. E lá chegou um avião. Todos os ocupantes eram cuidadosamente observados por nós, principalmente as mulheres com a descrição cuidadosa e antecipadamente feita por mamãe. É aquela? Não! E aquela ali? Não! Mas deve ser aquela? Não! Também não é aquela, e nem aquela e nem aquela.
Os passageiros ainda permaneciam alguns minutos na sala de desembarque esperando a liberação de suas bagagens que chegavam pela esteira rolante e à medida que as apanhavam iam saindo e passando pelo nosso crivo. E até sair a última passageira, nada da esperada prima. É, ela deve ter apanhado outro avião – era o que comentávamos. Sabe como são essas coisas de escala e conexão.
Olha, tá chegando um avião do eixo Rio-São Paulo. Mas, dentre os passageiros também não estava o motivo de nossa ansiedade. Tá chegando um avião de Brasília. Também nem sinal da homenageanda desconhecida. E agora? Já era mais de meia-noite. Desolados, enrolamos a bandeira (ou melhor, a faixa) e batemos em retirada resolvidos a voltar pela manhã, quando chegariam outros voos da terra do Pão de Açúcar.
Em casa de meus pais ligamos pra casa onde ficaria hospedada a prima e depois de insistentes telefonemas e atendimentos estranhos, soubemos que a prima chegara. Entretanto, cansada, já se recolhera e que no dia seguinte viria à casa de meus pais. Como? Ela chegou pelo aeroporto? Como passou pelos nossos olhares argutos? Meu sangue de índio amazônida ferveu e eu não quis mais conversa, retornando para casa.
Depois vieram variadas desculpas esfarrapadas que não me convenceram. Daquela noite restaram algumas fotos que depois sumiram. Soube que mamãe mandou para a tal prima que ficara comovida (?) com o que viu (nas fotos)!? Reconstituímos variadas vezes a situação e a conclusão sempre foi a mesma: A prima que era rica, colunável à la Mayrink, não aprovou aquela recepção suburbana, que pode até lhe ter tocado a alma, mas não aceita por seu lado chique e dos amigos onde se hospedara. Seus anfitriões locais devem ter contribuído para que a prima não se submetesse ao vexame de uma recepção brega demais, conseguindo que saísse por outro local. Tudo isso passou por nossa cabeça, mas definhou com o tempo. Também porque aquele episódio parece não ter influído e nem contribuído em nossas vidas.
Lamentável que deixamos de conhecer mais uma pessoa da nossa parentela. O sol se pôs e nasceu muitas vezes. Passaram longas luas como dizem os índios dos filmes americanos. Aqui e acolá lembrávamos aquela situação e ríamos a valer, de como às vezes nos tornamos ridículos, com docilidade canina, para alegrar os outros, mesmo a alguém que não conhecemos. Choveu milhares de vezes nesta abençoada terra do antigo Grão Pará. E sucederam outros acontecimentos. Certo dia mamãe perguntou se eu não me importaria em participar de um jantar, um almoço ou alguma coisa assim com a mesma prima. Claro que não! Os tempos são outros. Aprendi na vida que devemos nos desfazer daqueles sentimentos negativos de situações mal resolvidas, decepções, recalques, frustrações, brigas, mágoas, complexos e outros que nos fazem mal. Devemos nos desfazer dessas batatas podres se quisermos ser verdadeiramente felizes. E estava eu disposto mais uma vez a ir encontrar, recepcionar ou qualquer outro tipo de coisa a tal prima, mesmo que aconteça, o que duvido muito que ocorresse, outro desencontro. Mas se ocorresse garanto uma coisa, de tal vez seria totalmente diferente. Não saio nem um pouquinho chateado. Não mesmo, de verdade, porque, passados todos esses anos, tenho sido presenteado dia a dia pela vida e não é qualquer desfeita, acho que nenhuma mesmo, que me impedirá de sorrir como faço todos os dias. Graças a Deus, ó Pai Celestial!
Belém, 23/06/2003
Texto: Roberto Pimentel
*O autor é advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor. Escreve toda quinta-feira neste espaço de A PROVÍNCIA DO PARÁ