Pesquisador mostra como o “Bruxo do Cosme Velho” mergulhou na alma humana antes de o austríaco criar a psicanálise
Tatiana Cavalcanti, colaboração para a CNN Brasil
E se Machado de Assis tivesse antecipado os conceitos de Sigmund Freud? A provocação parece ousada, mas é justamente o que defende o pesquisador Adelmo Marcos Rossi no livro “O Imortal Machado de Assis – Autor de Si Mesmo”.
Depois de quase 15 anos de pesquisa, Rossi reuniu evidências de que o autor carioca —conhecido como o Bruxo do Cosme Velho, em alusão à casa onde viveu no Rio de Janeiro— já dissecava os mesmos dilemas, desejos e contradições que a psicanálise descreveria com termos técnicos décadas depois.
Machado talvez não usasse palavras como “inconsciente” ou “transferência”, mas sabia, como poucos, que a alma humana é um território cheio de impulsos ocultos, vaidades e máscaras.
Em seus romances e contos, ele transformou o comportamento em literatura — e, sem precisar de divã, parecia entender o funcionamento da mente com uma profundidade que só Freud ousaria sistematizar no século seguinte.
Rossi não veio da literatura, e talvez por isso enxergue o óbvio que passou despercebido por tanto tempo. Engenheiro civil, psicólogo e mestre em filosofia, ele levou para os textos de Machado a curiosidade de quem quer entender o ser humano por dentro.
Seu livro mostra como o escritor, ainda no século XIX, tratava o narcisismo com um tipo de franqueza impossível para a ciência da época.
“Há uma vergonha em admitir o narcisismo em si mesmo”, diz Rossi. “Machado tinha essa consciência e soube transformar o tema em arte — Freud, como cientista, só pôde abordá-lo mais tarde e de forma indireta.”
Rossi lembra ainda que Machado reconhecia sua própria genialidade, mas a dosava com ironia, ao contrário de Freud, que precisava manter a postura de cientista revolucionário. “Freud mudou a psicologia; Machado mudou o jeito de olhar para a alma humana.”
Literatura já fazia terapia
Ao reler Machado por esse prisma, Rossi propõe algo instigante: talvez a literatura tenha chegado primeiro à alma que a própria ciência.
No livro de Rossi “O Imortal Machado de Assis – Autor de Si Mesmo” mostra um escritor que, com elegância e ironia, sondou os abismos da mente antes que a palavra “psicanálise” existisse.
Em tempos de egos inflados e redes sociais, Rossi lança um lembrete com sabor machadiano: o narcisismo continua por aí —só ficou mais digital.
Confira sete indícios citados por Rossi:
- Narcisismo: o pecado original
Antes de Freud nomear o conceito em 1914, Machado já escrevia sobre personagens devorados pela própria vaidade. Em contos como Três Tesouros Perdidos (1858), o espelho não é só um objeto — é um campo de batalha. Rossi lembra que Machado via o narcisismo como algo inevitável, um ingrediente do próprio ato de existir, enquanto a filosofia tentava recusar o tema como pecado. - A cura pela fala
“Similia similibus curantur”, dizia Machado — o semelhante se cura pelo semelhante. Para Rossi, a frase resume um pensamento que a psicanálise transformaria em método: falar é terapêutico. Machado, ainda no século XIX, parecia já enxergar na conversa franca uma forma de aliviar o sofrimento. - Inconsciente em ação
Ao afirmar que “uma sensação vale um raciocínio”, Machado antecipava a grande virada freudiana — a de que há algo em nós que escapa ao controle racional. Ele intuía que o ser humano age, muitas vezes, por impulsos que desconhece, e fez disso o motor de seus personagens mais complexos. - Ironias, chistes e lapsos
Rossi aponta que Machado dominava a ironia como poucos, e a usava para dizer o indizível. Essa “petalogia” — termo que ele próprio usava — lembra muito os chistes de Freud, as piadas reveladoras que deixam o inconsciente escapar. Cada tropeço de personagem, cada frase atravessada, era uma fresta para o que se escondia sob o verniz da razão. - Amor de transferência
Antes que Freud descrevesse o fenômeno em consultório, Machado já o dramatizava na literatura. As amizades intensas, como entre Bento e Escobar, carregam essa confusão entre afeto e projeção — um amor que transcende a amizade, movido pela necessidade de se ver no outro. - Desejo versus repressão
Entre o querer e o dever, os personagens machadianos vivem apertados. Rossi mostra que essa tensão — desejo versus norma — é o coração tanto da ficção machadiana quanto da teoria freudiana. É nesse confronto, diz ele, que nascem os sintomas, as neuroses e, claro, as grandes histórias. - A literatura como espelho da alma
Em vez de bisturis e diagnósticos, Machado usava a pena. Para ele, a arte dava conta de mergulhar na alma humana de forma mais completa que a ciência. Rossi defende que o escritor carioca fez, com palavras, o que Freud faria com conceitos: abrir passagem para o inconsciente.
Reprodução









