Naquele mês de dezembro, eu a vi quase todos os dias ao descer do ônibus para ir trabalhar, sempre por volta das 17 horas. Mas não a enxergava até o dia que parei pra tomar um tacacá ao lado do prédio sempre movimentado da Uepa. Era o caminho que fazia para as longas noites de edição na redação de O Liberal.
Enquanto bebia, fiquei olhando insistentemenre aquela sem-teto solitária, de aparência frágil, sentada no chão próximo à Delegacia do Marco.
A partir daquele dia, passei a procurar minha sem-teto no meu percurso rumo ao jornal impresso onde passava até dez horas reescrevendo textos escritos por focas despreparados, trabalho que às vezes me deixava exaurido.
Minha sem-teto sempre estava sentada próximo ao prédio da unidade policial. Isso foi o mote para despertar minha curiosidade jornalística.
Decidi me aproximar e vê-la de perto. Comprei um pedaço de bolo e um copo de suco posto em um saquinho plástico e atravessei a rua para levar meu presente.
A sexagenária, que há dias vestia a mesma roupa, tinha um olhar vago que não mirava nada especificamente. A fragilidade exalava de seu corpo.
Ela aceitou o lanche sem agradecer. Me olhava inexpressivamente e parecia muito cansada. Cansada da vida!
Presumi, por pura ilação, que aquela mulher cuja fragilidade era visível e incomodativa, vivia há pouco tempo nas ruas e não tinha nenhum amigo sem-teto. Fui mais fundo ainda: era rejeitada por outros sem-teto da área.
Escolheu ficar próximo ao prédio policial instintivamente, na esperança de ser socorrida se fosse agredida. Não tinha nenhuma tarimba de sem-teto veteranos que viviam na área, dormindo sob um viaduto e sob marquises próximas. Não tinha nenhuma muda de roupa e imaginei que levava um lençol na pequena sacola de pano que era sua única bagagem.
A extrema fragilidade espiritual e física daquela idosa me incomodava muito. Naquele dezembro ainda de pouca chuva, comprava lanche todos os dias e dava à mulher de olhar vago. Nunca trocamos sequer uma palavra.
Para tentar diminuir a culpa que sentia por ver uma pessoa tão indefesa abandonada em uma cidade cheia de armadilhas e perigos para todos, aumentava e diversificava os alimentos doados. Levava suco e água.
Fiquei com a consciência pesada quando não vi mais Dona Frágil no seu “ponto” nas calçadas vizinhas da Delegacia. A sua ausências prolongada me exasperava e feria minha consciência.
Nunca mais vi Dona Frágil e toda vez que passo na Perebebuí a procuro no seu “ponto”.
Texto: Raimundo Souza
*O Autor é jornalista, integrante da equipe de articulistas de A PROVÍNCIA DO PARÁ e escreve todo sábado neste espaço