A promessa: ganhar dinheiro sem sair de casa
Com a crise econômica e o desemprego em alta, muitas mulheres brasileiras encontraram no microtrabalho digital uma possibilidade de renda, mesmo que pequena. São tarefas simples, mas repetitivas: assistir a vídeos, curtir postagens, responder pesquisas e até treinar sistemas de inteligência artificial.
A promessa? Ganhar dinheiro usando apenas o celular, sem sair de casa. A realidade, porém, é bem mais dura.
A história de Flávia: 14 horas de trabalho por dia
Flávia (nome fictício), de 32 anos, mãe solo de três filhos e moradora de São Gonçalo (RJ), trabalha até 14 horas por dia entre plataformas como PiniOn, Kwai e Shopee.
Ela avalia aplicativos, assiste a vídeos repetidamente e compartilha links de produtos na esperança de uma comissão. Após um mês e mais de 400 horas diante das telas, consegue pouco menos de R$ 700, quantia usada para sustentar cinco pessoas, incluindo um irmão com deficiência.
“Meus olhos ficam ardendo. O ombro queima. Tento deitar na cama, deixar os vídeos rolando automaticamente para descansar um pouco”, conta.
Juliana e os “bicos virtuais”
Em Pernambuco, Juliana (nome fictício) também se agarrou ao microtrabalho após meses desempregada. A proposta parecia simples: curtir postagens de lojas e enviar capturas de tela para comprovar.
O ganho prometido era de R$ 5 a R$ 10 por curtida, mas o que ela não sabia é que caiu num esquema fraudulento. A empresa envolvida, o Magazine Luiza, negou qualquer vínculo e alertou para golpes que usam indevidamente seu nome.
Um mercado dominado por mulheres
Segundo estudo do Laboratório de Trabalho, Plataformização e Saúde (LATRAPS), da Universidade Estadual de Minas Gerais, no Brasil, 63% dos microtrabalhadores são mulheres uma inversão em relação a outros países, onde 70% são homens.
A razão? Além da dificuldade de conseguir emprego formal, muitas mulheres são também as principais cuidadoras da família. O microtrabalho aparece como uma maneira de conciliar as tarefas domésticas com alguma fonte de renda.
“É a tentativa de juntar os trabalhos: entre varrer a casa e fazer o almoço, elas realizam pequenas tarefas digitais”, explica o pesquisador Matheus Viana Braz.
Os efeitos: cansaço, ansiedade e isolamento
Por trás da flexibilidade, há jornadas longas e fragmentadas, exaustão física, isolamento e ansiedade.
“As mulheres entram várias vezes ao dia nas plataformas, em sessões curtas, entre uma tarefa doméstica e outra”, diz Braz.
Além disso, o trabalho é repetitivo e não gera aprendizado ou qualificação para o mercado formal.
Invisibilidade e precarização
O microtrabalho é invisível. Diferente dos entregadores de aplicativo, os microtrabalhadores atuam de forma isolada e silenciosa, o que aumenta a vulnerabilidade.
“Você sai na rua e vê um entregador. Já o microtrabalhador, ninguém vê”, comenta Renan Kalil, procurador do Trabalho.
Um exemplo dessa precarização ocorreu em 2022, quando a Justiça condenou uma empresa que contratava profissionais para corrigir atendimentos virtuais como microempreendedores, mas que, na prática, exigia jornadas exaustivas e pagava centavos por minuto de trabalho.
O desafio da regulamentação
Hoje, não há regulamentação específica para o microtrabalho, nem no Brasil, nem no mundo.
Algumas iniciativas de pressão sobre as plataformas surgem, mas a regulamentação ainda engatinha. No Brasil, o Ministério Público do Trabalho criou recentemente um grupo de estudo sobre o tema.
Reflexão: quem lucra com o trabalho invisível?
Enquanto mulheres ocupam a base da pirâmide do trabalho digital, realizando tarefas repetitivas e mal remuneradas, as grandes empresas de tecnologia as big techs lucram e ditam as regras.
“A promessa é de autonomia, mas a realidade é de precarização e insegurança”, alerta a pesquisadora Luiza Dutra, da PUC-RS.
Ela destaca que a desigualdade de gênero se mantém e até se aprofunda no ambiente digital, com as mulheres ficando com os “subempregos” enquanto são excluídas dos espaços de poder e decisão.
Por trás dos algoritmos, vidas invisíveis
“Por trás de toda a inteligência artificial, há sempre um ser humano, muitas vezes uma mulher, que alimentou e treinou aquela tecnologia”, lembra Dutra.
O trabalho invisível dessas mulheres sustenta parte da economia digital, mas sem proteção, reconhecimento ou remuneração justa.
Por: Thays Garcia/ A Província do Pará
Com informações BBC NEWS
Imagem:Reprodução