Quando eu era criança, meu pai, ao me carregar no colo e fazer seus agrados, falava de forma ritmada e repetida: “pesenta, pesenta, pesenta ganda uma”. E essa forma de agrado se repetiu inúmeras vezes, até que, lá pelos meus dez anos, com vergonha de meus colegas, pedi que ele não fizesse mais aquilo. Sabe lá como ele se sentiu, mas atendeu minha vontade, não tendo, diante de sua simplicidade, a reação que eu teria hoje como pai, explicando que aquilo era um mimo, fruto do valor afetivo; que nem toda criança tinha aquele privilégio de um ato afetuoso do pai; uns porque não têm pais, outros pela falta de tempo, oportunidade ou sensibilidade do progenitor.
Depois de crescido, lembrei desse fato e lamentei arrependido dessa minha conduta infantil. E o tempo seguiu seu curso inexorável. Quando ele adoeceu, já com 77 anos e eu com 46, um ou dois meses antes de partir, em uma de nossas longas e saudosas conversas, em que tive a oportunidade e aproveitei, graças a Deus, para pedir perdão de atos desagradáveis, cujos perdões vieram com lágrimas e demorados abraços.
Numa dessas vezes, lhe perguntei o que ele queria dizer com o seu “pesenta, pesenta, pesenta ganda uma”? Ele riu, não se lembrando muito, não sabendo de pronto dizer a que se referia, mas lembrou que era uma imitação da linguagem infantil, comum no primeiro ano de fala. Decifrei logo a charada. Pai – perguntei – não seria uma alteração e inversão de palavras, significando, respectivamente, “presente, grande e um”, numa linguagem pueril em que além da má articulação das palavras, os artigos e pronomes são mencionados sem concordância? E que o significado era “um grande presente”? E ele sorrindo, assentiu plenamente, de que na realidade ele queria dizer que “eu era e sou um grande presente”, em consonância com as palavras do sábio rei (Salmos 127:3): “Eis que os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão”. Rimos, externando nossa alegria e afeto mútuo.
Lembro do meu pai com imensa saudade em quase todos os dias, senão em todos, apesar dele ter partido há mais de dez anos. Recordo sua forma de amar, sua generosidade, suas citações domésticas, seu bom humor, contador de piadas e situações engraçadas, sua ironia, enfim, sua forma de ser. O meneio da cabeça de minha filha lembra meu pai. O andar de meu filho mais velho, já homem há alguns anos, traz meu pai à minha lembrança. Os pés grandes de meu terceiro filho lembram meu pai. O olhar ou um trejeito do caçula lembram meu velho. Ele não sabia dançar e nem chutar uma bola de futebol, apesar de gostar muito do esporte, chegando a arbitrar algumas partidas em sua juventude.
Vim concluir anos depois o porquê da falta desses itens. Ao perder o pai ainda menino, começou a trabalhar muito cedo, não tendo tido muito tempo para brincar. E quando adulto, assumiu por algum tempo a casa, ajudando a mãe na criação de seus dois irmãos do segundo casamento. O cansaço e a responsabilidade lhe subtraíram a oportunidade de participar das festas dançantes e jogos. Mas ele foi feliz e nos fez intensamente felizes. Fazia questão de difundir sua realização de pai, lembrando vários momentos, principalmente no dia em que eu e minhas duas irmãs passamos de uma só vez no vestibular da Universidade Federal do Pará. E depois vieram as respectivas formaturas e outros eventos dos quais participou conosco.
E comigo, participou da festa de minha conclusão do Curso Elementar (4º ano do primário), de meu “Juramento à Bandeira”, após o recrutamento na FAB (ele serviu ao Exército), de minha formatura em Direito, do “Juramento de Advogado”, da formatura de Delegado de Polícia”, na festa de posse na presidência de minha entidade associativa. Sempre que tomei e tomo meus filhos no colo, os dois mais novos ainda crianças, pronuncio o mimo de meu saudoso pai: “pesenta, pesenta, pesenta ganda uma”, mas eles nunca tiveram a minha já mencionada desagradável reação. Que bom! Ontem, no carro, meu filho Jordão, de 4 anos, perguntou: pai o senhor me ama? Claro meu filho – respondi – você é um grande presente dado por Deus. E ele imediatamente completou: “pesenta, pesenta, pesenta ganda uma”, levando eu e sua mãe aos risos. E eu, além da alegria, da satisfação, pela observação do curumim, voltei a lembrar de meu saudoso pai.
Texto: Roberto Pimentel
*O autor é advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor. Escreve toda quinta-feira neste espaço de A PROVÍNCIA DO PARÁ