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LITERATURA – A flor de uapé

Contava mamãe, que ainda jovem, se deu conta da flor de uapé, uma planta aquática existente em alguns dos rios da Amazônia, cujo nome é uma das variações do nome científico aguapé, que significa água no pé, havendo um desses espécimes em um dos igarapés da localidade onde morou e lecionou.

A existência da variante da planta existente somente naquele lugar suscitava lendas a respeito porque quando surgia o botão nunca se via a flor desabrochada.

Quando mamãe via um botão de uapé ficava acompanhando seu desenvolvimento indo todas as manhãs ao rio até que um dia quando esperava encontrar sua flor não encontrava nem mais o botão.

Várias eram as conjecturas a respeito. Alguém devia ter chegado mais cedo e colhido a flor, sendo isso atribuído a feiticeiros e pajés para composição de seus trabalhos e puçangas.

Também corria no lugar a lenda de que quando a flor desabrochava pela madrugada seu perfume atraía os jabutis que vinham comê-la.

Anos depois um professor de ensino fundamental que por ali passou chegou a acampar à beira do rio em várias oportunidades quando nascia o botão da planta, para acompanhar o desabrochar da flor, ficando ali durante a noite. Nas primeiras vezes foi vencido pelo sono e ao amanhecer lá estava a planta sem o botão e sem a flor. Na última de suas tentativas de registrar o nascimento da flor que nunca fora vista, disse ter visto um jabuti comendo a tal flor e ao perguntar intimamente porque o animal fazia aquela estranha degustação ouviu deste, como se em comunicação telepática, a justificativa que entre os animais de sua espécie quem comesse a flor desabrochada daquela espécie de uapé, adquiriria a imortalidade, conseguindo obter asas e alçar o “Paraíso dos Quelônios”.

Os que escutaram a história do professor riram dele, apesar da ingenuidade do povo do lugar mais suscetível a crença de lendas. Sua versão não era aceita porque achavam que quando o professor pernoitava à beira do igarapé não devia estar bem de suas faculdades mentais, pois comentava-se que fumava birra e devia estar sob o efeito da erva.

Permanecia assim ao povo, o mistério do sumiço, ou melhor, do não desabrochar da flor de uapé.

Mamãe, professora estadual já aposentada, em conversa com o tal professor repassando-lhe experiências do magistério fundamental, escutou com atenção a aventura que disse ter sido por ele vivida com a intenção de desvendar aquele mistério. Como ela já morava há muito na capital, resolveu chamar para si aquela tarefa.

Com muito trabalho resolveu levar para casa em Belém, um pé daquela planta, passando a muito custo cultivá-la no quintal, onde construiu um pequeno lago artificial, mudando-lhe com certa constância a água com a que era trazida daquele igarapé, assim como lodo e outras substâncias que eram trazidas com sacrifício da mesma fonte e que julgava serem úteis ao cultivo da planta fora de seu habitat natural.

Após alguns anos, quando já estava perdendo as esperanças de ver tanto esforço premiado, mamãe foi surpreendida com o surgimento de um botão do tal vegetal.

Bem, pensou ela, agora finalmente veria a tal flor de uapé. E esse mistério ganharia a mídia, revistas científicas, enciclopédias etc, pois, afinal, seria desvendado o mistério do qual tomara conhecimento em sua juventude e do povo daquela região paroara.

Papai chegou de viagem pela madrugada, trazendo várias coisas, como era peculiar, de suas andanças como marreteiro (pequeno comerciante ambulante) pelo interior – milho verde, frutas (cupuaçu, bacuri), peixe salgado, galinhas, patos, jabutis, farinha de mandioca e outras mercadorias que foram deixadas na cozinha. E como mamãe estava dormindo ele não quis acordá-la.

Pela manhã mamãe acordou para fazer o café matinal, tendo descido e se deparado com toda aquela mercadoria como de costume.

Papai acordou-se e os dois passaram a conversar.

De repente mamãe observou os jabutis entre a carga que papai trouxera pela madrugada, assim como sentiu rescender um perfume que já sentira mas não lembrava quando e algo bateu em sua intuição, tendo perguntado a papai quantos jabutis trouxera.

– Sete? – procurou confirmar ma mãe. Tendo papai assentido.

– Mas só vejo seis aqui – continuou mamãe.

– Um deles deve ter se soltado – completou papai sem nenhuma preocupação.

Mamãe teve então um pressentimento e correu até o quintal onde cultivava o pé de uapé, encontrando-o sem o botão que vira à noitinha antes de dormir.

– Alguém tirou minha flor daqui? – perguntou mamãe, obtendo resposta negativa de todos.

Ela respirou fundo e voltou à cozinha para terminar o café e mais tarde desistiu da trabalheira que lhe dava o vegetal.

Pensou em destruir a planta, mas ela ali em seu mutismo vegetal se apresentava sem culpa, enquanto o sétimo jabuti sumira.

Dias depois mamãe retornou à Ponta Alegre levando de volta a planta ao igarapé de onde fora retirada, decidindo não mais se envolver com aquele mistério que permanece até hoje a suscitar outras histórias.

13/08/2003

* Texto: Roberto Pimentel*Advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor

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