Há quase um século, o mundo se viu diante de uma das principais descobertas da medicina, a penicilina, que seria o primeiro antibiótico da história. O avanço abriu caminho a uma era de combate a infecções — e ao sonho de acabar de vez com a festa de bactérias e companhia.
O que não se esperava é que esses micro-organismos também se armariam para contra-atacar. E essa reação se tornou uma nova e silenciosa batalha global: a resistência antimicrobiana.
Amarga ilusão a do ser humano que pensa dominar o planeta. Nossa espécie divide espaço com tantas outras, inclusive as microscópicas. A relação pode ser amigável, neutra… ou bélica. No fundo, todo mundo só quer sobreviver — e perpetuar a família. Nessa convivência com “os outros”, ora atacamos, ora somos atacados. E, a depender da ação que tomamos (e de sua escala), pode apostar que haverá reação. E das grandes.
Talvez nada ilustre isso tão bem quanto as infecções. Bactérias, fungos, vírus e outros parasitas podem viver com a gente em relativa paz, mas basta algo desandar para a coisa ficar feia. Eles se transformam em patógenos, criaturas invisíveis capazes de plantar doenças, evoluir ao longo do tempo (inclusive em resposta ao que a gente faz)… E desenvolver resistência ao que os cientistas bolaram para controlá-los, os medicamentos antimicrobianos. Aí, o bicho pega!
“Quando falamos de resistência, falamos de micro-organismos que sofrem uma pressão seletiva, a partir de mudanças climáticas, uso de remédios ou aplicação de produtos químicos na agricultura”, expõe Nísia Trindade, ministra da Saúde. Ação e reação. Um dos fatores de pressão mais preocupantes é justamente o emprego abusivo de armas como antibióticos. “Com a pandemia de Covid-19, houve um aumento excessivo no uso dessas medicações, o que piorou a situação”, afirma Nísia a VEJA SAÚDE.
O crescimento da resistência bacteriana, visto como um dos maiores desafios no horizonte — um relatório estima 10 milhões de mortes por ano de 2050 em diante —, também tem tudo a ver com a inter-relação entre espécies e as transformações que o homem impõe ao mundo.
“Ela deixa evidente a conexão entre a saúde das pessoas e a dos animais, a agricultura e o meio ambiente, conforme o conceito de Uma Só Saúde”, diz a ministra, fazendo referência à ideia de One Health, crucial para prevenir e solucionar os contratempos sanitários — entre eles, novas pandemias e infecções duras na queda.
A resistência dos micróbios não é um fenômeno novo. Acredita-se que os primeiros casos surgiram em hospitais após a introdução massiva dos antibióticos na primeira metade do século 20.
Um estudo publicado na revista Nature descreveu o aparecimento de exemplares resistentes da bactéria estreptococo em unidades médicas militares ainda nos anos 1930. Outra espécie bastante conhecida, a Staphylococcus aureus, se mostrou combativa ao primeiro antibiótico criado, a penicilina, em hospitais de Londres logo após sua introdução, nos anos 1940. O mesmo efeito pôde ser observado com o agente da tuberculose, o bacilo de Koch, que aprendeu a se defender da estreptomicina.
A forma como algumas bactérias disseminavam o que viria a ser chamado de mecanismo de resistência foi relatada por estudiosos na década de 1960. Uma investigação, liderada pelo pesquisador japonês Tsutomu Watanabe, revelou, inclusive, a possibilidade de troca de material genético entre bactérias de espécies iguais ou diferentes — como se elas compartilhassem aprendizados para serem bem-sucedidas.
Um dos mais notórios cientistas nesse ramo, o americano Stuart Blank Levy, foi o primeiro a descrever um caso do problema relacionado a frangos alimentados com ração contendo baixas doses de antibiótico, em 1976. As aves desenvolveram cepas bacterianas resistentes, que posteriormente viriam a atrapalhar os próprios produtores. Dois anos mais tarde, o grupo de Levy desvendou que a bactéria Escherichia coli, por trás de infecções urinárias, se impunha contra a tetraciclina, expulsando o antibiótico para fora de suas células!
O trabalho do professor, ao lado de outros nomes inscritos na história da medicina, foi decisivo para chamar a atenção a um movimento que tinha tudo para ganhar tração. No entanto, como se costuma ver em filmes, cientistas tendem a ser ignorados em seus alertas… Até que a bomba-relógio esteja prestes a explodir.
No fundo, o que um patógeno quer é sobreviver. O que se torna uma encrenca para nós, humanos. “O micro-organismo acaba adquirindo resistência após ser exposto a um medicamento. Nesse processo, deixa de ser combatido por ele ou passa a ser apenas parcialmente eliminado”, explica o infectologista Carlos Kiffer, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O evento, como fica claro, é potencializado pela ação humana, sobretudo com o uso indiscriminado de remédios teoricamente controlados. “Quanto mais se usa, mais matamos as bactérias que são sensíveis, enquanto as resistentes prevalecem e podem transmitir esses mecanismos de resistência a outras”, detalha a microbiologista Ana Paula Assef, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Há dez anos, a resistência antimicrobiana se tornou uma prioridade para a Organização Mundial da Saúde (OMS). No período, foi lançado o primeiro relatório com resultados do escrutínio do problema pela comunidade científica global. Naquele momento, soou o alerta para a possibilidade de o mundo entrar em um período assombroso: a era pós-antibióticos.
Na prática, significa que o fenômeno da resistência deve se mostrar cada vez mais comum e difícil de controlar, transformando, em última instância, infecções hoje passíveis de tratamento simples em moléstias letais — algo especialmente crítico dentro dos hospitais, onde circulam mais doentes e micróbios.
A OMS adverte para o aumento no risco de contágio, agravamento e mortes por essas condições. Um problema que vai além das doenças infecciosas em si. Inúmeras intervenções realizadas em ambiente hospitalar ampliam as chances de se contrair um germe — e resistente! Isso engloba cirurgias, transplantes, hemodiálise e terapias contra o câncer.
Um documento do governo britânico, também de uma década atrás, se consolidou como uma das fontes mais relevantes sobre o tamanho do problema, permanecendo como referência para os estudiosos. Ele projeta que, sem uma resposta internacional eficiente, a resistência antimicrobiana poderá levar a óbito dezenas de milhões de pessoas pelo planeta a partir de 2050. O cálculo é assustador: seria uma vida perdida a cada três segundos!
As estimativas mais recentes sobre o cenário atual, utilizadas pela OMS, vêm de uma análise robusta publicada no periódico The Lancet em cima de dados de 2019. Ela aponta que a resistência bacteriana foi a causa de 1,27 milhão de mortes e contribuiu para outros 4,95 milhões em todo o mundo apenas naquele ano.
A exemplo de outras questões sanitárias, os impactos dos supermicróbios também são desiguais. “Micro-organismos resistentes estão disseminados em vários países e em todas as regiões, independentemente da renda da população, ocorrendo em nações mais ricas ou mais pobres, mas é importante frisar que as taxas de infecção e óbito são quase sempre mais elevadas nos países de baixa renda”, observa a microbiologista Agnes Figueiredo, professora das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fluminense (UFF).
TRUQUES DE MICRÓBIOS
Os patógenos não ficaram atrás na corrida armamentista da medicina. Eles também desenvolveram suas armas e cartas na manga. Primeiro, células bacterianas e fúngicas se multiplicam muito mais rapidamente do que as de mamíferos, e, a cada divisão celular, o DNA se duplica. “Nesse processo, podem ocorrer mudanças. O material genético sofre alterações que chamamos de mutação. Outros fatores, físicos e químicos, também podem levar a elas”, explica Agnes.
Ainda que não sejam comuns, essas transformações podem acontecer em qualquer gene, inclusive naqueles associados à produção de uma proteína do patógeno que estaria na mira dos remédios. “Assim, o antimicrobiano não consegue mais se ligar ao seu alvo para agir, tornando o micro-organismo resistente”, esclarece a especialista.
Outra estratégia é a modificação de proteínas que tornam a superfície do germe impermeável. Sem conseguir entrar na célula ou sendo expulso imediatamente, o fármaco também tem seus efeitos comprometidos.
Apesar das semelhanças descritas, a transferência dos mecanismos de resistência é diferente de um tipo de micro-organismo para o outro. Fungos, em geral, podem herdar esses traços de geração em geração, como detalha o infectologista Arnaldo Lopes Colombo, professor da Unifesp.
“Temos a indução de uma mutação em um fungo que foi exposto, e sua prole vai efetivamente carregar aquele mesmo gene mutante. É uma transmissão vertical da resistência, e não horizontal, como temos no mundo das bactérias”, sintetiza o médico.
Em outras palavras, enquanto elas passam seus truques às vizinhas de ambiente, eles tendem a legá-los a seus filhotes. Por falar em bactérias, cada espécie apresenta um jeito particular de transferência do mecanismo de resistência, geralmente ligada a um componente genético. “Um exemplo é o de bactérias que adquirem genes que levam à produção de enzimas capazes de degradar as substâncias dos antimicrobianos, deixando-os completamente inoperantes”, diz a professora da UFRJ e da UFF. Pura engenhosidade para sobreviver.
A escassez global de novos antimicrobianos é considerada um dos principais gargalos diante da resistência. O desenvolvimento de medicamentos enfrenta uma verdadeira crise, sinalizada pela OMS repetidas vezes ao longo dos últimos anos. Em 2017, a entidade publicou a primeira lista de bactérias prioritárias para o desenvolvimento de alvos terapêuticos, e o mesmo foi feito para os fungos há dois anos.
O mais recente relatório da organização, publicado em 2021, identificou 27 antibióticos em desenvolvimento clínico que abordam bactérias dessa lista, dos quais apenas seis foram classificados como inovadores. Consultada, a OMS informou que a nova versão do documento será lançada em abril deste ano.
Em grande parte, a insuficiência pode ser explicada por certo desinteresse da indústria farmacêutica na formulação desse tipo de fármaco, um processo que pode levar de dez a 15 anos. “Assim que os medicamentos são lançados no mercado, as bactérias se tornam resistentes rapidamente. Por isso, esse investimento é visto, de uma maneira geral, como pouco lucrativo”, interpreta Ana Paula, da Fiocruz.
Apesar do cenário alarmante, existem linhas de pesquisa visando à descoberta de estratégias antimicrobianas diferentes. “Alguns estudos envolvem análises com produtos naturais, oriundos de plantas e esponjas marinhas, dos próprios micro-organismos e de bacteriófagos, que são vírus que atacam bactérias”, elenca Agnes.
Há também investigações buscando a síntese de novos compostos baseados em modificações de estruturas naturais conhecidas por possuir efeitos bactericidas. O Brasil conta com uma iniciativa promissora nesse sentido, desenvolvida no Instituto Butantan, em São Paulo.
O estudo, liderado pelo biólogo Pedro Ismael da Silva Junior, levou à identificação de uma molécula com potencial para combater bactérias resistentes — ela é extraída de outra bactéria, o Lactobacillus acidophilus, e foi nomeada Doderlina. “O termo faz referência aos bacilos de Doderlein, também chamados de lactobacilos”, conta o cientista.
Em laboratório, os testes revelaram uma boa atuação ante espécies bacterianas perigosas, como Escherichia coli e Pseudomonas aeruginosa, e o fungo Candida albicans. Os próximos passos envolvem a análise minuciosa de como os fragmentos da Doderlina podem desarticular os patógenos resistentes, além da busca de parcerias para formulação e teste de um creme à base do composto.
NO CAMPO DE BATALHA
De um lado, os micróbios estão constantemente em evolução. Do outro, a ciência também.
“Uma vertente de pesquisa visa ao aumento da eficácia antimicrobiana através da atuação da droga sobre novos alvos da bactéria, de uma forma que não levaria à resistência. Outra busca a inativação, o silenciamento ou a edição de genes de resistência”, detalha Agnes. A especialista pondera que ainda serão necessários anos de estudo para que se possa confirmar a utilidade desse arsenal.
Uma tática mais pé no chão seria acelerar o diagnóstico dos agentes envolvidos na infecção para acertar no remédio — hoje, a depender da infraestrutura, o resultado do exame de culturas pode levar de horas a dias. Saber com agilidade quem está por trás do problema é uma forma de garantir mais precisão na escolha dos antibióticos e melhorar o prognóstico dos pacientes.
Uma ideia gestada por um time da Universidade de São Paulo (USP) poderá revolucionar a área com a criação de uma rede em nuvem, o MicrobeMASST.
“O sistema é construído a partir da espectometria de massas, tecnologia que mede a relação entre massa e carga de uma substância”, descreve o professor Norberto Peporine Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP. A partir dessas informações, a plataforma permite acessar a identidade da bactéria em um banco de dados mundial de livre acesso.
E que tal utilizar vírus que sabidamente infectam bactérias para acabar com a festa delas? Pois cientistas também apostam no uso de bacteriófagos, micróbios que, ao invadir bactérias, provocam a ruptura de suas células. Resultados animadores de uma experiência com essa ferramenta viva vieram da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos.
“Descobrimos que a terapia com bacteriófagos inicialmente melhorou a condição de um paciente e permitiu que ele saísse do hospital e ficasse em casa por vários meses. No entanto, o efeito foi de curta duração por razões que não entendemos inteiramente”, relata a professora Daria Van Tyne, uma das autoras do teste-piloto. Os resultados foram publicados no periódico mBio.
O cenário da resistência antimicrobiana pode ser transformado a partir de um conjunto de ações em escala global, com a participação de diversos atores, incluindo governos, gestores e profissionais de áreas como saúde, agricultura, ciência e tecnologia, agências reguladoras e população em geral. Ufa! Parece muita gente — e é.
“A academia aponta o foco da luz para onde deve ser o caminho, o governo traça estratégias para estimular a mitigação, a cadeia produtiva segue determinadas ações para reduzir o problema, a vigilância busca executar a sua tarefa de forma eficaz, e assim por diante”, elucida Kiffer.
A OMS lançou o plano de ação global de enfrentamento ao problema em 2015. “O documento reúne objetivos como a conscientização da população, o controle do uso de antibiótico em humanos e animais, a promoção de saneamento básico, o investimento em pesquisas para novos diagnósticos e tratamentos, o incentivo à utilização de vacinas, além de estudos que avaliam seu impacto econômico”, descreve Ana Paula.
Na iniciativa, a agência de saúde das Nações Unidas (ONU) também insta os países a articular seus próprios projetos. A primeira versão do plano brasileiro foi lançada em 2018. Coordenada pelo Ministério da Saúde, a elaboração contou com a participação ativa de outras pastas, da Anvisa, de instituições de pesquisa e de universidades. Neste ano, o texto passa por uma ampla revisão, que deve ser concluída no primeiro semestre.
“Estamos preparando a nova edição do plano para 2024-2028, adotando a estratégia de Uma Só Saúde. Esse esforço mostra nosso compromisso em lidar com a resistência antimicrobiana tanto no Brasil quanto no cenário internacional, destacando a importância de uma ação integrada, conjunta e coordenada”, afirma Nísia.
Consultada sobre seu papel no enfrentamento ao problema, a Anvisa, órgão que aprova e monitora os remédios no país, respondeu, em nota, que desde a sua criação, em 1999, realiza um conjunto de ações que inclui a prevenção e controle de infecções e resistência em serviços de saúde, vigilância de infecções relacionadas à assistência e monitoramento de surtos e de novos mecanismos de resistência — e há de se ressaltar que existem micro-organismos multirresistentes.
A lista de tarefas da agência inclui, ainda, a análise da qualidade dos antimicrobianos. Nesse terreno, a Anvisa atualizou, em 2010, as regras para comercialização da classe. Desde então, o acesso a esse tipo de medicamento se tornou mais restrito.
“A publicação que determina a retenção de receita de medicamentos à base de substâncias classificadas como antimicrobianos contribui de forma incontestável para a redução do uso indiscriminado pela população brasileira, tendo em vista que a exigência da receita, além de inibir a automedicação, prevê a necessidade de um diagnóstico médico de infecção”, destaca a entidade.
Acontece que o perigo não espreita apenas nos domínios dos hospitais e farmácias. O uso de antimicrobianos na pecuária também é apontado como um fator crítico para o aumento da resistência.
O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) conta com um plano nacional específico para a questão, que entrou em sua segunda etapa em 2023. De acordo com o balanço divulgado pela pasta, na primeira etapa (2018-2022), foram obtidos avanços como proibições de medicamentos com finalidade de promoção de crescimento animal, elaboração de guias e manuais de atuação sustentável, ações de conscientização e implementação de um programa de vigilância microbiana.
Problema complexo, solução complexa. Eis a resistência bacteriana e fúngica. Para domá-la, é preciso garantir de saneamento básico — algo aparentemente tão trivial, mas inacessível a um quarto dos brasileiros — a investimento em pesquisa de ponta para produzir terapias fora da caixa. No meio desse caminho, ainda é prudente reforçar a vacinação contra doenças que podem levar à internação hospitalar.
“Já existem alguns imunizantes disponíveis, como os de pneumonia e meningite, que se encaixam nessa categoria. Mas temos um grande número de bactérias descobertas por trás de quadros graves”, afirma a médica Silvia Figueiredo Costa, professora da USP.
Até o destino que a gente dá aos fármacos tomados em casa importa. Existem evidências de vários estudos que identificaram a presença de resíduos de antibióticos em estações de tratamento de esgotos domésticos.
“Nestas estações também estão presentes grandes quantidades de matéria orgânica e de bactérias. Assim, pode ocorrer um processo de pressão seletiva da comunidade bacteriana para o desenvolvimento de cepas resistentes, que acabam sendo lançadas pelos efluentes das estações nos corpos receptores, chegando aos ecossistemas aquáticos”, aponta o sanitarista Paulo Barrocas, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
O especialista orienta: “Existem locais onde são recolhidos medicamentos vencidos ou não utilizados para o seu correto descarte, como farmácias.”
Entre dúvidas e angústias no horizonte, uma coisa é certa: os micróbios não vão desistir tão fácil dessa batalha. Cabe à humanidade, como um todo, seguir um plano de guerra e começar a agir — ou poderá ser tarde demais.
Imgem: Alissa Eckert/CDC