sexta-feira, dezembro 13, 2024
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LITERATURA – O melhor vinho

Houve um casal que vivia feliz, ou, pelo menos assim acreditava.

A mulher, querendo demonstrar seu amor, fazia de tudo a seu alcance, extravasando sua dedicação para agradar ao amado.

Dentre as múltiplas aptidões dela estava a de fazer vinhos. E assim, passou a cultivar uma pequena plantação de uvas.

Tão logo vieram os primeiros frutos. E, cheia de entusiasmo, ela escolheu os melhores e preparou com esmero um vinho para o esposo. Este, chegando do trabalho ao provar o vinho que lhe era oferecido, gostou, mas não fez o elogio que a mulher esperava tanto ouvir.

Talvez ele tenha agido com pouco entusiasmo porque as uvas ainda não estavam bem amadurecidas e não poderiam produzir um bom vinho, apesar do esforço dela.

Quando os frutos amadureceram ela selecionou os melhores, produzindo outros vinhos. E o marido ao bebê-los não deixou de elogiar o sabor, entretanto, sem o entusiasmo que a esposa tanto queria ver demonstrado.

A mulher, então, plantou mudas raras, para que produzissem uvas especiais, mais saborosas. E ao tempo da colheita voltou a fazer novos vinhos, com redobrada dedicação, na ansiosa esperança de agradar seu homem e receber em troca alegres e ruidosos encômios. Mas, este ao beber o produto da dedicação da esposa, mesmo satisfeito, não foi diferente das vezes anteriores.

Depois dessa última tentativa de ver aquele esforço sorvido e elogiado como queria, cansada de esperar a coroação de tanto desvelo e sacrifício, frustrada, a mulher apanhou o restante do produto e o guardou no porão da casa, encerrando um ciclo no qual achou não ter tido sucesso.

Talvez aquele homem por ser rude, do campo, com a formação fria de seus antepassados, sem a extroversão, cortesia e a polidez mais afeita ao citadino, mesmo que tenha se deliciado com o vinho feito por sua mulher, não extravasou o que realmente sentiu, nem jorrado a empolgação que era peculiar de sua esposa e que esta gostaria de ver como retribuição. Mas isso de forma alguma foi motivo para destroçar o relacionamento do casal, continuando a relação em duradouro crescente, florescendo a cada dia, em permanente primavera, como disse o poeta.

Depois vieram os filhos, aumentando mais e mais os laços afetivos. E vieram outras coisas e acontecimentos a aumentar mais e mais aquele exemplo de relacionamento fundado em atração mútua. As dificuldades, aflições, insucessos, assim como alegrias, emoções, como os primeiros dentes e os primeiros passinhos das crianças. Os méritos escolares dos filhos a envaidecer e encher de orgulho o casal.

Os anos se passaram chegando ambos a barreira dos quarenta, sem que viesse ocorrer algo inesperado, natural ou sobrenatural a quebrar a paz reinante na família.

Um dia o homem viajou a negócios e estando ausente de casa, passou por ali uma caravana de estrangeiros, composta de homens e mulheres das mais variadas partes da terra e, naturalmente, de diferentes culturas, idades, formações filosóficas, religiosas e profissionais. Um grupo heterogêneo, multifacetado, havendo médicos, comerciantes, advogados, engenheiros, pesquisadores, economistas, arquitetos, artistas plásticos, professores, banqueiros, enfim, os mais variados profissionais, todos com algo em comum: a vontade de conhecer novos lugares e pessoas, pois, entediados com a rotina queriam sair de seu lugar comum, conhecer novas terras, ampliar seus conhecimentos e o relacionamento social.

A mulher aprestou-se hospedar aquela gente. E nos dias em que aquela caravana ali permaneceu a casa entrou em clima de verdadeira e contínua festa.

Os hóspedes foram brindados com a atenção que era peculiar da anfitriã que colocou em prática suas melhores receitas, produzindo seus quitutes, cremes, saladas, doces, sucos e iguarias de sabores exóticos inigualáveis.

Foram dias de encantamento, nos quais aquela boa mulher liberou mais sua risada, suas considerações e opiniões, diversificando suas conversas com cada um de seus interlocutores, ouvindo e aprendendo coisas que nunca e nem imaginara ouvir e aprender. Relembrou passagens de livros, romances, poesias perdidas em sua memória, absorvendo com interesse e encanto às experiências interessantes e histórias maravilhosas de seus hóspedes. Quando era sua vez de falar todos a escutavam interessados e atentos, levando a mulher descobrir que possuía outros talentos, como o uso da palavra, da crítica, do debate, sobre os mais variados assuntos que até ela mesmo se surpreendia estar abordando, tais como política, economia, artes, concluindo que até então levara uma vida insípida de amigos, pois seus velhos circunstantes, os mesmos de anos, estavam muito aquém do alcance de suas idéias que naqueles dias eram trocadas habilmente com aqueles alienígenas que espantaram seu tédio, numa verdadeira comunhão de propósitos e sonhos.

Era como se fossem velhos amigos, alguns como se fossem colegas de infância, saídos de repente de um mundo mágico. Sentia-se como se tivesse sempre conhecido aquela gente, tantas eram as afinidades descobertas.

As conversas iniciavam pela manhã, se estendiam pela tarde, noite, varando madrugadas em momentos indescritíveis, preenchendo o vazio até então existente naquela bondosa alma com outros atributos até então adormecidos despertando e aflorando diante do inesperado.

Foi então que ela lembrou-se do vinho que fizera há anos e que frustrada, guardara e esquecera no porão de sua casa, para onde então se dirigiu retornando com algumas garrafas empoeiradas, arriscando-se timidamente servir a alguns dos visitantes que falaram ser amantes do vinho.

Foi um sucesso! Todos, sem exceção, ao provarem dos vinhos exclamavam os mais esfuziantes e rebuscados panegíricos. Diziam muito mais daquilo que a mulher sempre quisera ouvir do marido. Elogios em profusão que a deixavam estonteada e em estado de graça.

E não podia ser diferente, pois o vinho, naturalmente envelhecido, estava melhor, mais apurado, tendo alguns dos convivas se mostrado mais empolgados que os demais, levando a mulher a esmerar-se na procura de garrafas com rótulos de uvas mais saborosas, cujo líquido passou a ser degustado com sofreguidão, seguindo-se sempre um elogio diferente, como néctar dos deuses, líquido de outra galáxia, o que Baco não tivera o privilégio de provar …

Por fim, a comitiva despediu-se e se foi coincidentemente com o retorno do marido, cuja ausência daquela vez nem fora sentida. E este ao chegar percebeu que algo mudara, algo acontecera durante sua ausência, o motivo da transformação da mulher, pois esta apresentava-se diferente e em estado de indisfarçável enlevo, mas que não era por seu retorno.

Afinal, ela, além de ouvir daquelas pessoas o que sempre quisera ouvir do marido, e ter participado de um relacionamento de júbilo inesperado, se descobrira como pessoa que não nascera para viver naquele mundinho que sempre vivera.

Esse estado de quase arrebatamento da vinicultora deixou o marido preocupado, enciumado, angustiado, sentindo pela primeira vez a sensação que sofrera uma baixa profunda no relacionamento conjugal, vislumbrando que dali em diante sua mulher não seria a mesma.

Assim, ele quis e pediu para provar daquilo que tanto sucesso causara deixando os estrangeiros impressionados. Mas, a mulher disse de chofre que acabara, mesmo tendo sobrado algum, pois decidira dar uma lição em seu amado, punindo-o pela desatenção e o desprezo que julgava ter sido vítima durante aqueles anos, pois, não fora só o vinho, como outras coisas que fizera não tiveram sua valorização através de manifestações elogiosas que sempre buscou recebê-las.

As poucas garrafas que ainda restavam, ficaram estrategicamente escondidas, passando a serem enviadas para alguns dos visitantes em suas cidades, mesmo que não fossem sorvidas em casa da mesma forma como fora feito na varanda e no caramanchão da casa da anfitriã nas numerosas e animadas conversas coletivas, acreditando esta que seus vinhos eram apreciados com saudade, mesmo que eles, ao chegar ao destino ficassem esquecidos nas prateleiras de seus destinatários e que estes preferissem os importados, consumidos nos sofisticados salões das metrópoles.

Essa situação não afetou de todo a convivência do casal, até porque as afinidades entre ambos ainda eram tantas, se completando os dois numa infinidade de pontos, continuando a mulher a render ao marido as homenagens de sempre com convicção, a respeitá-lo, a tolerá-lo, a acompanhá-lo em suas empreitadas.

Em sua rotina continuou a fazer os quitutes e cremes dos quais ele gostava, a ouvir regularmente suas cantilenas e conversas desinteressantes, a massagear seus ombros e costas, e outras coisas que se acostumara fazer com prazer ou resignação, recebendo igual afeição, a acompanhá-lo nos programas da família e a dividir as responsabilidades da casa, retomando todo relacionamento do casal.

Mas, quanto ao vinho, por achar que estava coberta de razão, privou seu amado de ao menos um cálice, de um gole sequer, daquilo que ainda restava do bom e apurado líquido existente na adega, apesar da curiosidade e o interesse que se apossou deste.

Aquele homem, pela experiência adquirida da vida, resolveu conformar-se com a situação. Afinal, aprendera que nada neste mundo é completo. Nada é pleno e nem eterno. E talvez aquele acontecimento viera para destroçar a vida à dois, a abalar toda a afinidade existente, e tudo aquilo que fora construído e solidificado com sua então mulher durante aqueles anos, coisas que nem todos os visitantes juntos, por mais sábios, generosos e sensíveis que fossem, por mais que passassem mais tempo ali, não iriam entender nunca aquele relacionamento que fora colocado em segundo plano por ela.

Naturalmente aquelas pessoas deviam ter também seus problemas em casa. Se não era o vinho, seria o pão, a roupa, a festa, ou qualquer uma outra incompatibilidade que todos têm e não percebem.

Eles poderiam saber elogiar um, dois ou três atributos daquela mulher, mas nunca penetrariam no âmago da vida daquele casal e nunca compreenderiam as desventuras que ambos venceram e como alicerçaram aquela união para chegarem até li. Da cumplicidade que os tornava fraternos e mais dependentes entre si. Das alegrias e tristezas que riram e choraram juntos. Do acompanhamento da criação dos filhos, desde os primeiros passos, a primeira dentição e de angustiosas noites de febre alta. Do abraço terno na madrugada. Da solidariedade nas dificuldades. Não, não, isso nenhum deles sequer e nem todos juntos compreenderiam e substituiriam.

O encantamento vivido naqueles mágicos dias não abriu espaço para discussão dessas coisas que às vezes servem para unir dois seres para toda vida.

E o homem, lembrando-se da fábula da raposa e das uvas, achou que talvez não gostasse mesmo de vinho e que talvez nunca pudesse dizer o que sentia com o júbilo ansiado, a alegria ruidosa, o entusiasmo teatral mostrado pelas pessoas que extasiaram sua mulher, mesmo que tenha isso sido falso, apenas para agradar a anfitriã. Ou porque ainda não tinham provado de um vinho feito com um ingrediente especial, agora envelhecido, apurado, muito melhor do que aquele oferecido inicialmente de uvas verdes e dos outros ainda com o gosto da uva fresca. Por mais que ele tenha gostado mais do que os convivas que tanto impressionaram sua esposa, não teve ele a sensibilidade de transmitir seu contentamento, diferentemente daqueles que assim afagaram o ego da mulher.

E ele ponderou que ela merecia tudo isso. E muito mais, em se completar naquilo que ele não soubera lhe dar.

Numa noite, passada a tempestade que invadiu sua alma, ao voltar para casa e receber uma xícara de café que lhe fora estendida pela mulher ele a abraçou silenciosamente fitando-a no fundo em seus olhos, imaginou-se tomando o melhor vinho que sua esposa já fizera ou estava por fazer. Mas, concluiu que tudo que recebera na vida fora e era o melhor vinho que até então bebera. Sabia que ela não seria mais a mesma a partir de então e sentiu que era uma questão de tempo o desenlace. Portanto, já preparava seu espírito para o inevitável. E enquanto isso não acontecia, ele elevou imperceptivelmente os olhos para o Alto, agradecendo sem alarde, intimamente, como lhe era peculiar, a quem o presenteava no curso de sua vida com o melhor vinho.

Belém, fevereiro de 1998Texto: Roberto Pimentel*Advogado, delegado de Polícia aposentado, radialista e escritor

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